Um encontro casual outro dia com um
veterano membro do coro do Teatro
Municipal trouxe muitas boas
lembranças dos meus três anos na
versão do La Scala do Milan ou da
Metropolitan Opera House no Rio de
Janeiro.
A memória fala: a primeira "lembrança" que vem à mente foi quando estive
participando de "Rigoletto" com um
mito brasileiro, a atriz e cantora
Bibi Ferreira dirigindo a ópera
clássica de Verdi.
Naquela época, Bibi devia estar na
casa dos 80, mas seu entusiasmo era
de uma jovem, e eu descobri -
assistindo da minha cadeira na
orquestra, como primeiro oboé - o
que um bom diretor faz ou deveria
fazer: como ela mostrava, em
minutos, detalhes no palco para os
cantores todos os movimentos e
gestos necessários para reeditar a
saga. Os resultados foram
magníficos: ela trouxe para a ópera
a magia do mundo do teatro musical,
que afinal é o que faz uma grande
ópera!
(Neste momento em que escrevo, Bibi,
95, deve estar se preparando para
cantar em um novo show! É uma pena
que o Teatro Municipal nunca a tenha
chamado para outra produção de
ópera. Está ouvindo, diretor do TM,
Fernando Bicudo?)
A ópera é um gosto adquirido, mas
uma vez que voce é picado por esse
bichinho - me picou quando trabalhei
na Orquestra Sinfônica do Teatro
Municipal (Ostm) - isso pode mudar a
sua vida e a sua visão da música (e
talvez da vida). De repente, me vi
comprando fitas de vídeo de óperas
completas, indo para cinemas para
assistir e ouvir como a ópera é
feita em várias partes do mundo, e
ouvir - no meu sofá ou deitado na
rede nas montanhas de Teresópolis -
o programa "Ópera Completa":
transmissões ao vivo do Metropolitan
Opera House na Rádio MEC, a estação
de música clássica do Rio, durante o
frio inverno em minha cidade natal,
Nova York.
Mas a ópera é apenas parte da
jornada de trabalho de um músico no
fosso da OSTM, ou de qualquer
orquestra de teatro. Que emoções eu
senti quando toquei meus primeiros
"Quebra-Nozes" e "Lago dos Cisnes"
de Tschaikovsky com a OSTM ! (Se eu
tivesse que tocar todos os anos por
30-40 temporadas, não sei se
continuaria sentindo essa emoção).
Desde as maravilhas do Cisne Negro
até o Pas de Deux, tudo no palco é
tão tentador de assistir, que era
difícil para mim e para os outros
músicos da orquestra mantermos
nossos olhos sempre nas notas
musicais, sentados em um espaço
apertado (e eu pensava que tinha
claustrofobia!).
Mas performances de balé e ópera
são apenas parte da vida no Teatro
Municipal.
Há os treinos / lições diárias
para os bailarinos (com quem eu
estava morrendo de vontade de me
juntar para trabalhar meu físico...)
e os aquecimentos vocais dos membros
do coro, que também são uma valiosa
inspiração para o instrumentista.
E no final de óperas ou
performances de balé, há outro
momento mágico: quando a orquestra
no fosso aplaude as estrelas da
noite.
Mas há as intrigas e os momentos
coloridos que um músico sinfônico -
como eu era - nunca poderia imaginar
ou sonhar: o diretor brasileiro
Gerald Thomas baixando as calças e
mostrando o traseiro para o público
quando eles vaiaram sua montagem
escura e cheia de fumaça do "Navio
Fantasma" de Wagner; dois cantores
de ópera italianos saindo de uma
produção de ópera após o primeiro
ato porque não foram pagos; ou o
regente da OSTM protestando quando
um presidente impopular do Brasil
esteve presente; e meu oboé se
transformando no "Pato" no "Pedro e
o Lobo" de Prokofiev, em uma
adaptação teatral americana
completa, com juiz e testemunhas,
chamada "Pedro contra o Lobo".
Mas voltando aos meus 36 meses
no fosso, outro momento inesquecível
foi quando estive participando do "Candide"
de Leonard Bernstein, com a equipe
de Charles Moeller e Claudio
Botelho, que iniciavam no Brasil
suas muito aplaudidas montagens de
clássicos da Broadway. Toquei
muitas vezes na cidade de Nova York
na High School of Music and Art a
famosa abertura de "Candide", mas
nunca toquei toda a ópera, que se
baseia no clássico de Voltaire. A
platéia, a orquestra e o coro
adoraram todos os momentos dessa
volta de Leonard Bernstein ao Rio de
Janeiro. (quando jovem, Bernstein
visitou o Rio como maestro e
pianista solo da New York
Philarmonic, e muitos anos depois
voltou ao Rio anonimamente durante o
Carnaval, incluindo uma visita ao
compositor brasileiro Guerra Peixe.
Mas essa é outra história!)
Ah, a memória fala...os sonhos
que se tornaram realidade no Rio de
Janeiro: tocar "Carmen" de Bizet e
Salome de Strauss, 'Nabucco de Verdi'
com o famoso coro 'Va pensiero',
'Cosi von Tutti' de Mozart com Fabio
Mechetti conduzindo, e ' Carmina
Burana' com o inesquecível Silvio Barbato (que morreu depois em um
acidente de avião) conduzindo o
coro, a orquestra e os solistas
através do dinâmico latim profano de
Carl Orff.
Minha única lembrança ruim da vida
no OSTM foi tocar - ou enfrentar - o
"Lohengrin" de Wagner. Em
circunstâncias mais favoráveis -
econômica e artisticamente - a
orquestra deveria ser dividida para
que os músicos não toquem quatro
horas seguidas. (Uma parte da
orquestra poderia tocar duas horas e
outra parte as duas horas
restantes). Mas no OSTM - novamente
para reduzir as restrições
orçamentárias da orquestra, que
esteve até recentemente com cinco
meses atrasados no pagamento de
salários - os músicos tinham que
tocar todas as notas até que eles
caíssem de cansaço. E no final deste
meu "Lohengrin", vários músicos
tiveram uma série de doenças, e uma
morte suspeita de um violinista.
A temporada de 2018 no teatro
municipal está prestes a começar ...
A cortina será aberta após o
Carnaval do Rio em fevereiro, com os
salários (menos o bônus de dezembro)
finalmente sendo pagos. Um antigo
diretor, mas bastante capaz e
carismático, Fernando Bicudo, está
voltando a tentar uma renascimento
no mesmo Teatro onde a lenda diz que Toscanini começou sua carreira,
quando um maestro estava doente ou
não apareceu para reger. Apesar da
saída do ex-diretor artístico Andre
Heller, uma diretoria artística
coletiva está assumindo, incluindo a
lendária primeira bailarina Ana
Botafogo e o excelente maestro
Tobias Volkmann. MAS, enquanto
escrevo este texto no final de
Janeiro, ainda não sabemos quais
balés e óperas serão encenadas em
2018!
No chamado "mundo desenvolvido",
dançarinos, cantores, cenários e
figurinistas e músicos orquestrais
saberiam com antecedência - um a
três anos ou antes - o que vai
acontecer, para que eles se
preparem. Mas o Rio de Janeiro é
muitas vezes a cidade dos milagres,
e estou certo de que todos irão, de
alguma forma, estar preparados.
Boa Sorte, Mr.Bicudo e antigos
colegas no Teatro Municipal do Rio.
SAUDADES!
Texto: Harold Emert (contato)
- tradução: Roberto Carelli
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