Enquanto escrevo isso, um dos
melhores fagotistas do mundo, o
francês-brasileiro Noel Devos, de 88
anos, está hospitalizado em uma
enfermaria de emergência em
Copacabana, Rio de Janeiro, com
infecção pulmonar.
Como primeiro oboísta da Orquestra
Sinfonica Brasileira, tive a sorte
de ter sido um colega de Devos por
vinte temporadas, incluindo tournées
pela Europa e EUA, bem como em
numerosas gravações e solos (Mozart
Concertante, etc.).
Eu também compus e dediquei meu Duo
para oboe e fagote, 'Três
Divertimentos', para Devos, em um
recital que realizamos no Museu de
Arte Moderna do Rio.
No último movimento, inclui um tema
francês anterior à Segunda Guerra
sugerido por ele, e incluí minha
própria versão de "Frere Jacques".
O Duo me trouxe boa sorte, tendo
sido executado inúmeras vezes no
exterior pelo New York Kamnermusiker
e na minha própria apresentação com
Leonard Hindell, ex-fagote da NY
Philarmonic, na International Double
Reed Convention em Muncie, Indiana,
tendo sido bem recebida por um
público de críticos.
|
Noel Devos (foto: Roberto
Carelli/Brasil Clássico) |
E isso faz parte da magia e herança
de um grande artista da música:
Monsieur Devos, que deu seu toque de
Midas na música e nos músicos no
Brasil.
Desde que chegou no Rio de Janeiro,
em 1952, a convite do Maestro
Eleazar Carvalho para se juntar à
Sinfônica Brasileira, ele criou uma
escola de fagotes. Não devemos
esquecer que nessa terra exótica de
Carnaval e de futebol, o fagote era
instrumento relativamente raro e
desconhecido (embora alega-se que o
imperador Dom Pedro I teria tocado
fagote!).
Ele estimulou compositores como
Francisco Mignone (16 Valsas solo,
Concertino), Guerra Peixe (Duo para
clarinete e fagote), José Siqueira
(Modinha), entre outros, a compor
para um instrumento até então pouco
conhecido. E até mesmo compositores
a escreverem obras para três, quatro ou
cinco fagotes.
E Devos inclusive mostrou que
compositores como Ernesto Nazareth
poderiam e deveriam ser tocados no
fagote.
Enquanto escrevo essas palavras,
meus ouvidos ainda se recordam de
quando apresentamos o poema
sinfônico 'Museu da Inconfidência'
de Guerra Peixe com um solo
surpreendente e genial para fagote
de Noel, acompanhado de um woodblock.
Muitos estrangeiros chegam ao que
consideram uma cultura desconhecida
e distante chamada Brasil trazendo
uma arrogância de primeiro mundo, do
tipo "Eu estou vindo aqui para
ensinar alguma coisa para esses
nativos."
O contrário é frequentemente o caso;
Há muito o que aprender com aqueles
grandes talentos que nasceram e
cresceram aqui, ou aqueles que
geralmente são imigrantes
extraordinários como Devos, cujo
destino era residir e trabalhar no
Brasil - especificamente no Rio de
Janeiro.
Sem dúvida, esse nativo de Calais e
graduado do Conservatório de Paris,
foi um desses que trouxeram para o
Brasil um grande talento usado para
criar, em vez de criticar ou mesmo
destruir.
Seu legado é um exemplo de que as
pessoas "refugiadas" muitas vezes
podem fazer grandes contribuições
para culturas "estrangeiras".
Além de estimular novas composições
para o fagote, Devos reviveu os
trabalhos de educação musical do
maior compositor do Brasil, Villa-Lobos, interpretando, gravando, e
ensinando a nova geração como
trabalhos difíceis (ex: duo para
oboé e fagote), ou mesmos
aparentemente impossíveis, devem ser
tocados.
Em 2017, ele recebeu a medalha
Villa-Lobos por suas conquistas.
Devos também deu inúmeros recitais
para fagote e piano quando a cultura
musical do país era mais conhecida como "pianolândia".
Como primeiro oboe, sentei-me diante
de este gênio do fagote francês por
duas décadas. Nunca me lembro de ter
ouvido de Devos uma nota fora do
lugar.
É extraordinário pensar sobre isso
e, em retrospectiva, talvez explique
sua façanha milagrosa de ter gravado
em um dia, todas as dezesseis
"Valsas", escritas para ele por
Mignone, supostamente todas de uma
vez.
Em seu estúdio em seu apartamento no
bairro do Catete, no Rio - a poucas
quadras do Museu da República (a
antiga residência dos presidentes do
Brasil, quando Rio era a capital do
Brasil) - Devos foi um trabalhador
paciente, como foi mostrado em um
belo documentário de sua neta, a
cineasta Tatiana Devos Gentil.
Sua rotina musical, que quase sempre
incluiu tocar em duas orquestras,
recitais de música de câmara, e
ensinar uma multidão de alunos, não
foi interrompida pela paixão amorosa
de Ana, de sua esposa brasileira -
ela própria, uma violoncelista na
orquestra municipal do Rio de
Janeiro.
Ele manteve palhetas para seu fagote
durante décadas, e muitas vezes
usaria a mesma palheta que ele havia
usado para executar Mozart ou
Stravinsky 10, 20 ou 30 anos depois.
Nas paredes do estúdio de Devos,
além de revistas como a Gramophone e outras da França,
estão pinturas caricaturizadas do
fagotista e de outros músicos,
pintados
pela versão brasileira de Chagall,
Alexandre Rapoport. (O filho do
artista brasileiro, Ricardo,
ex-aluno de Devos, é um dos mestres do fagote barroco
francês.)
Antes de ter Devos como colega na
Orquestra Sinfônica Brasileira,
nunca tinha ouvido um fagote francês
e, a medida que os anos passam, este
instrumento de palheta dupla mais
leve e "líquido" está se tornando um
dinossauro na orquestra. É uma pena,
porque sinto falta do som único do
fagote francês em Ravel (Bolero),
Debussy e nos concertos para piano
de Rachmaninoff, depois de ouvir
Devos tocar os solos tão bem.
No Hospital Copa D'Or, alguns dias
depois do Carnaval no Rio, há
lágrimas nos meus olhos quando saio
da sala de emergência, onde o Sr.
Devos está completamente entubado.
Saindo junto comigo do hospital, um
músico jovem, que qualquer outro
americano no Rio pensaria que era um
músico de Carnaval ou Chorinho. Mas
não... Ele é um aluno. Não um aluno
do Carnaval de Noel Rosa. Mas sim do
fagotista Noel Devos.
VIVA NOEL DEVOS!
Texto: Harold Emert (contato)
Edição adicional: Phylis Huber
Tradução: Roberto Carelli
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